A Moral & Religião da Conveniência
- Quer alguém olhar comigo até ao fundo do mistério onde se oculta a ‘fabricação do ideal’ sobre a terra? Quem tem forças para isso? Eia pois, olhai: Aqui temos uma janela desta tenebrosa oficina. Mas esperai um pouco, senhor temerário; é preciso que a vossa vista se habitue a esta falsa luz, a esta luz cambiante… Já? Bom! Falemos, pois. Que se passa neste abismo? Homem curioso, que vedes? Estou a ouvir-vos.
- Eu não vejo nada, nem ouço… É um rumor prudente, um sussurro apenas perceptível que parece vir de todos os recantos. Afigura-se-me que aqui se mente; uma doçura como o mel torna viscosa a palavra. Aqui deve ser onde a mentira transforma a fraqueza em mérito; não há dúvida; é como dissestes!
- E que mais?
- Aqui a mentira chama bondade à impotência, humildade à baixeza, obediência à submissão forçada (eles dizem que obedecem a Deus). A cobardia, que está sempre à porta do fraco, toma aqui um nome muito sonoro e chama-se ‘paciência’. Não se poder vingar chama-se ‘não querer vingar-se’ e às vezes se chama ‘perdão das ofensas’; é “porque eles não sabem o que fazem”.
(…)
- E que mais?
- São uns desgraçados, todos estes rezadores, moedeiros falsos. Pretendem que Deus os distingue e os eleva em virtude da sua miséria; não se castigam os cães que mais se estimam? Talvez esta miséria seja uma preparação, um tempo de prova, um ensino, talvez um benefício, alguma coisa que será recompensada, decerto, por uma ‘felicidade eterna’.
- E que mais?
- Agora dizem que não só são os melhores que os poderosos e governantes, cujas pisadas beijam (não por temor, mas porque Deus manda honrar toda a autoridade); não só serão melhores, senão que o seu lote de eternidade será maior. Mas basta! Basta! Não insisto mais! Ar! Ar! Esta oficina onde se “fabrica ideal” cheira-me a mentira e a embuste.
- Um instante mais! Nada me dissestes ainda acerca desses virtuosos da magia negra. Não notastes a sua perfeição de artistas, a sua mentira mais subtil e espiritual? Estes seres subterrâneos, cheios de vingança e de ódio, que fazem dessa vingança e desse ódio? Ouvistes alguma vez linguagem semelhante? Se houvésseis de dar crédito às suas palavras, suspeitaríeis que vos acháveis entre os filhos do rancor?
- Oiço-vos e aplico de novo o ouvido e tapo também o nariz. Oiço-os dizer: “Nós, os bons, nós, os justos”. Não pedem represálias, mas ‘o triunfo da justiça’; não aborrecem ao inimigo, mas à ‘injustiça’, à ‘impiedade’, crêem e esperam, não na vingança, na ebriedade da vingança, (é mais doce do que o mel, já dizia Homero), senão na vitória de Deus, do ‘Deus da Justiça’, sobre os ‘ímpios’, não se chamam irmão do ódio, mas ‘irmãos do amor’, bons e justos na Terra.
- E como chamam àquele que lhe serve de consolo em todas as penas da existência?
- Como!? É possível o que oiço? A isso chamam eles ‘juízo final’, ‘vinda do seu reino’, do ‘reino de Deus’, e entretanto vivem ‘na fé, esperança e caridade’.
- Basta! Basta!
- Friederich Nietzche
- Quer alguém olhar comigo até ao fundo do mistério onde se oculta a ‘fabricação do ideal’ sobre a terra? Quem tem forças para isso? Eia pois, olhai: Aqui temos uma janela desta tenebrosa oficina. Mas esperai um pouco, senhor temerário; é preciso que a vossa vista se habitue a esta falsa luz, a esta luz cambiante… Já? Bom! Falemos, pois. Que se passa neste abismo? Homem curioso, que vedes? Estou a ouvir-vos.
- Eu não vejo nada, nem ouço… É um rumor prudente, um sussurro apenas perceptível que parece vir de todos os recantos. Afigura-se-me que aqui se mente; uma doçura como o mel torna viscosa a palavra. Aqui deve ser onde a mentira transforma a fraqueza em mérito; não há dúvida; é como dissestes!
- E que mais?
- Aqui a mentira chama bondade à impotência, humildade à baixeza, obediência à submissão forçada (eles dizem que obedecem a Deus). A cobardia, que está sempre à porta do fraco, toma aqui um nome muito sonoro e chama-se ‘paciência’. Não se poder vingar chama-se ‘não querer vingar-se’ e às vezes se chama ‘perdão das ofensas’; é “porque eles não sabem o que fazem”.
(…)
- E que mais?
- São uns desgraçados, todos estes rezadores, moedeiros falsos. Pretendem que Deus os distingue e os eleva em virtude da sua miséria; não se castigam os cães que mais se estimam? Talvez esta miséria seja uma preparação, um tempo de prova, um ensino, talvez um benefício, alguma coisa que será recompensada, decerto, por uma ‘felicidade eterna’.
- E que mais?
- Agora dizem que não só são os melhores que os poderosos e governantes, cujas pisadas beijam (não por temor, mas porque Deus manda honrar toda a autoridade); não só serão melhores, senão que o seu lote de eternidade será maior. Mas basta! Basta! Não insisto mais! Ar! Ar! Esta oficina onde se “fabrica ideal” cheira-me a mentira e a embuste.
- Um instante mais! Nada me dissestes ainda acerca desses virtuosos da magia negra. Não notastes a sua perfeição de artistas, a sua mentira mais subtil e espiritual? Estes seres subterrâneos, cheios de vingança e de ódio, que fazem dessa vingança e desse ódio? Ouvistes alguma vez linguagem semelhante? Se houvésseis de dar crédito às suas palavras, suspeitaríeis que vos acháveis entre os filhos do rancor?
- Oiço-vos e aplico de novo o ouvido e tapo também o nariz. Oiço-os dizer: “Nós, os bons, nós, os justos”. Não pedem represálias, mas ‘o triunfo da justiça’; não aborrecem ao inimigo, mas à ‘injustiça’, à ‘impiedade’, crêem e esperam, não na vingança, na ebriedade da vingança, (é mais doce do que o mel, já dizia Homero), senão na vitória de Deus, do ‘Deus da Justiça’, sobre os ‘ímpios’, não se chamam irmão do ódio, mas ‘irmãos do amor’, bons e justos na Terra.
- E como chamam àquele que lhe serve de consolo em todas as penas da existência?
- Como!? É possível o que oiço? A isso chamam eles ‘juízo final’, ‘vinda do seu reino’, do ‘reino de Deus’, e entretanto vivem ‘na fé, esperança e caridade’.
- Basta! Basta!
- Friederich Nietzche
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