A Moral
Há duas espécies de moral a que podemos chamar, respectivamente, de moral do medo e moral da esperança. A primeira esforça-se por evitar as catástrofes, enquanto a outra procura criar qualquer coisa que seja considerada boa e agradável.
A moral do medo tem sido muito mais predominante, tanto na formação dos códigos de moral, como na consciência ética dos indivíduos, O pecado, ou culpa, para empregar o termo preferido pelos psicanalistas, consiste essencialmente em ceder aos impulsos perigosos. A moral do medo julga impossível, ao mesmo tempo, prevenir as circunstâncias que causam tais impulsos e encontrar-lhe satisfações inofensivas. Propõe-se dar-lhes remédio aumentando o medo que elas inspiram e acrescentando às usas consequências naturais a ameaça de outros infortúnios. (…) Por exemplo, não deveis ceder à cólera, não somente pelo facto de que isso é perigoso, mas também porque uma coisa chamada ‘lei moral’ a condena e faz dela um pecado. (…) Fazendo intervir o ‘fogo do inferno’, aumenta-se o medo que naturalmente o homem tem de atacar o seu semelhante, sem fornecer outro motivo, além do receio, para o dissuadir de uma atitude agressiva (…)
Há evidentemente um princípio positivo: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Se suceder que na realidade amais o próximo, tudo vai bem; mas é impossível sentir o que quer que seja que mereça o nome de amor pela única razão de a lei moral o ordenar. Os nossos sentimentos não se submetem assim à direcção da nossa vontade. Quando pretendermos que assim seja, eles encarregar-se-ão de se realizarem, procurando alterar a nossa vontade sem que nos apercebamos disso. Se formos dos que cumprem a sua palavra, então pior para nós. Não é possível viver em condições quando o que sentimos é diferente do que pensamos que devemos sentir. (…)
Mas há outra emoção que se sente por vezes em relação a certas pessoas; é uma emoção que nos dá prazer. Podemos senti-la junto de uma pessoa que amamos, junto dos nossos filhos, principalmente se forem belos, alegres e afectuosos. É uma coisa absolutamente diferente daquela espécie de amor que podemos sentir em virtude de um preceito moral. O medo não representa nele nenhum papel e, quando é forte e são, suprime todo o impulso agressivo. Quando contemplais uma bela paisagem ou um belo quadro, se sois são de espírito, nada vos incitará a destruí-lo, nem direis: “devo amar esta paisagem com medo que ela se levante e me mate”. (…)
Todo o conceito de pecado é assim resultado do medo ante uma parte de nós próprios e traduz o conflito entre o desejo e a prudência. (…)
O domínio de si próprio, embora eu não negue de forma alguma a sua necessidade em muitas circunstâncias, não é a melhor forma de conseguir que um ser humano se conduza bem. Tem o inconveniente de diminuir a energia e as faculdades criativas. É como uma pesada armadura que, ao mesmo tempo que impede o vosso braço de bater nos vossos vizinhos, o torna igualmente incapaz de um movimento útil. Os que não têm outro apoio além da disciplina que se impõem a si mesmos tornam-se obstinados e timoratos com receio de si próprios. Mas os impulsos aos quais eles não permitem qualquer saída continuam a existir neles e, tal como os rios represados, cedo ou tarde transbordarão. As forças que opomos à função natural que é o desabrochar da nossa própria vida, ou se atrofiam, ou acabam por ter uma saída perturbando a vida de outrem. (…)
A única forma de abrir caminho a um progresso fundamental nesta psicologia do medo e da culpa, do castigo e da recompensa, é suscitar no homem, enquanto ainda jovem, impulsos e atitudes que o conduzam a uma existência que não implique nenhum conflito com o seu semelhante, porque as coisas desejadas dependerão do desabrochar das suas faculdades e das suas actividades construtiva, não de uma dominação exercida sobre outrem. (…)
Não se pode no entanto desembaraçar a vida de todos os perigos, caso contrário tornar-se-ia insuportavelmente fastidiosa. Os riscos são portanto indispensáveis, e aqueles que tremem à sua menor aproximação condenariam a sociedade, se um dia triunfassem, à esterilidade e à ossificação.
- Bertrand Russell
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