Tuesday, April 15, 2008

Pensamento do Dia


O Homem Culto


Todos nós conhecemos o homem culto. Convém referirmo-nos a ele como se falássemos de um velho parente que vimos de relance na juventude e acerca do qual se contavam na família algumas anedotas divertidas e por vezes bastante curiosas.

O homem culto tinha um espírito floreado, lera muitas coisas, possuía por vezes certa erudição, e exprimia-se numa linguagem cuja familiaridade de forma alguma nos fazia esquecer o culto que votava à sua pureza. Para ele, a cultura era um fim em si própria e ele apenas admitia conhecimentos literários ou científicos de natureza desinteressada. A sua aparência revelava muitas vezes o pouco caso que ele fazia da cultura física ou da higiene, embora desse mostras de certa garridice.

Agradava-lhe compor o aspecto externo da sua personagem. Esta correspondia à vida sedentária que levava e a um certo desprezo pelas contingências. Eis como nos recordamos de o ver a passar no Jardim do Luxemburgo, usando um sobretudo de peles e um chapéu de abas largas, sempre com um livro na mão, que ia lendo enquanto caminhava a passos curtos. Era um homem encantador, sem dúvida, desde que ninguém interrompesse a marcha do seu pensamento e lhe não perturbasse os hábitos, pois tinha hábitos que lhe eram sagrados e um pensamento que evoluía sempre em esferas bastante afastadas dos ruídos deste mundo.

No café, sentava-se atrás duma mesa sem tirar o chapéu, que conservava na cabeça enquanto lia o jornal. Sempre que fazia uma breve aparição na sociedade, onde o apreciavam precisamente por causa da sua cultura e da sua conversa, sabia falar às mulheres com espírito e galanteria. Perdoavam-lhe as originalidades pois o homem culto gozava o privilégio de ser original. O homem culto consideraria aliás de mau gosto referir-se às suas ocupações profissionais, que eram o seu ganha-pão; por vezes não tinha nenhumas, vivendo duma modesta renda ou dos lucros de uma empresa ou duma terra cuja administração confiava a alguém mais competente que ele. No entanto, quando lhe não era possível furtar-se à dura necessidade de exercer uma profissão ou de ocupar qualquer cargo, gostava de manifestar, embora sem ostentação, o desinteresse que lhe mereciam tais misérias. Tinha sempre bem presente que nada pode abalar a dignidade dos grandes homens.

A conversa do homem culto era deliciosa; sabia falar de tudo, não aprofundando nada. Possuía, portanto, um espírito crítico bastante desenvolvido. Ele próprio nada fazia que não fosse desinteressado; quer dizer que assimilava muitas coisas, evitando cuidadosamente comprometer-se com qualquer trabalho profundo, e sentia-se sobretudo à vontade quando criticava os outros. Atingia por vezes uma espécie de perfeição nessa crítica oral, tanto mais que os seus conhecimentos eram vastos e variados.

As pessoas ao escutá-lo sentiam por instantes a admiração pelo homem culto, pois, sempre que ele conseguia abandonar-se e revelar generosidade intelectual, os ouvintes sentiam-se tentados a participar da sua escola. Com frequência também, dava mostras duma espécie de pudor em revelar o fundo do seu pensamento e divertia-se a confundir os interlocutores com observações desconcertantes. Raros eram os amigos que iniciava nesses entusiasmos. Tais personagens inspiravam-se quase sempre numa escola de pintura pouco apreciada ou desconhecida dos críticos de arte, ou um escritor injustamente esquecido pelos manuais, ou ainda uma figura histórica cuja importância e génio haviam escapado aos historiadores. Tínhamos então a surpresa de descobrir que o homem culto adorava um ídolo qualquer. Mas não há dúvida de que possuía certas qualidades que os jovens hoje não têm. Lia os clássicos gregos e latinos com toda a facilidade, e sabia de cor extensas passagens de Corneille e Racine; estava perfeitamente familiarizado com as obras de Montaigne e de La Rochefoucauld; conhecia as diferentes edições deste ou daquele filósofo do século dezoito; estava a par dos amores dos reis; conservava a recordação deste ou daquele escritor ou homem político que o interessara na juventude; e falava eloquentemente das peripécias do caso Dreyfus. Evidentemente que tal tipo de conversa tinha um cero interesse; culminava por vezes em sínteses impressionantes, alumiavam-na certas observações que transcendiam as simples experiências livrescas; os ouvintes fixavam por vezes aqui uma fórmula, além um ensinamento. Mas ficávamos também desconcertados quando o nosso filósofo de café ou de salão se obstinava em nos apresentar como verdadeiro um paradoxo indefensável, ou quando fazia juízos peremptórios a respeito dos homens e dos acontecimentos quotidianos. Sentíamos que estava demasiado longe dos problemas e à margem da vida real.

Como sempre, tal espécie oferecia muitíssimas variantes individuais. O homem culto era um mecenas. Era coleccionador, bibliófilo, melómano, gastrónomo, purista, tinha a paixão da literatura, do teatro, da pintura, mas sempre como amador. Mas nada de desprezarmos excessivamente este termo de amador, pois ele vem de amar, nem o de diletante, pois o dilecto italiano tem um significado que enobrece todos quantos são capazes de se deliciar com as coisas do espírito e da arte. Quer fosse por timidez, quer fosse por egoísmo, a maioria das vezes o homem culto preferia conservar secreto o objecto da sua paixão que fazia as suas delícias. Recordava-se sem dúvida das pérolas que não se devem atirar aos porcos. As pessoas que se cultivavam desta forma sentiam-se muito acima da gente vulgar. Como poderia esta na verdade apreciar devidamente um produto cuja fruição exige tanta delicadeza e finura de espírito, mesmo até refinamento? No entanto, sucedia que o homem culto não era insensível às ideias generosas. Acima de tudo, interessava-o a liberdade individual, que lhe permitia dizer tudo ou fazer tudo quanto lhe passava pela cabeça, desde que respeitasse as conveniências, ou mantivesse as aparências. E isto explicava-se porque, apesar do seu aparente inconformismo, e embora se isolasse de bom grado do mundo circundante, continuava a respeitar os preconceitos.

Caso os ultrapassasse ou os negasse, isso poderia pôr em perigo a paz e a harmonia da sua vida, o que, à luz da sua concepção de cultura, o poderia afastar dela, precipitando-o em qualquer trapalhada. Ora o homem culto tinha um pavor medonho das trapalhadas; abstinha-se de descer à arena e, a não ser que fosse arrastado à força para qualquer conversa erudita, evitava qualquer espécie de compromisso que lhe pudesse causar um incómodo pessoal. (…)

Certo dia, em que interrogávamos o homem culto acerca daquilo que ele considerava serem os atributos permanentes pelos quais era possível reconhecer se um país estava verdadeiramente civilizado, ele respondeu-nos:

- Vejo três critérios. Primeiro, o bem falar, pois a civilização caracteriza-se pela arte da conversa. Em seguida, o bem comer, pois o país que produziu uma boa cozinha denota necessariamente um nível de civilização apreciável. Por fim, o bem dormir; um país onde até uma camponesa sabe fazer uma cama e cujos habitantes possam satisfazer a necessidade de repousarem numa cama bem feita é sem dúvida um país civilizado. (…)

- Jean de Salis.

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