Tudo é esburacado como a memória da gente. A estrada tem poças de água enluaradas como buracos aquáticos. E os homens passam, vestidos de sacos velhos com buracos enormes, por onde enfiam as cabeças negras e patéticas. A noite cai rapidamente, vertical, e é fria e e cheia de buracos, como se fosse um imenso coador de bronze que triturasse os homens e os diluísse, num espesso puré de miséria e desespero. São milhares, aguardando a morte. E, com raiva, com fúria, fabricam filhos, filhos e mais filhos. Para que o coador não pare, para que a noite os engula, para que os sacos sigam, de geração em geração, de cabeça em cabeça, para que a indústria de cadáveres progrida – é preciso ter consciência profissional, que diabo – e que outros corpos de ébano, esqueléticos e tiritantes, deambulem nas ruas das cidades paupérrimas, que têm banquetes nas casas bem, cascatas de falências, montanhas de cheques sem provisão, tudo buracos, implacáveis buracos.
– Sidónio Muralha
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