Sobre a Contradição Ideológica Inerente à Teoria da Luta de Classes
Acredito que o espírito profundo da ciência é materialista: mas justamente eis que a apresentam como analítica e burguesa. Logo, as posições estão invertidas, e vejo claramente duas classes em luta: uma, a burguesia, é materialista, o seu modo de pensar é a análise, a sua ideologia é a ciência; a outra, o proletariado, é idealista, o seu método de pensar é a síntese, a sua ideologia é a dialéctica. E como há luta entre as classes, deve haver incompatibilidade entre as ideologias. Mas de maneira nenhuma! Parece que a dialéctica coroa a ciência e explora os seus resultados; parece que a burguesia, utilizando a análise e consequentemente reduzindo o superior ao inferior, é idealista, ao passo que o proletariado (que pensa por síntese e que é conduzido pelo ideal revolucionário), mesmo quando afirma a irredutiilidade duma síntese aos seus elementos, é materialista… Quem poderá compreender isto? (…)
Uma ideia surge porque é necessária para a realização de uma nova tarefa. Quer dizer que a tarefa, antes mesmo de ser realizada, “apela” para a ideia que “facilitará” a sua realização. A ideia é postulada, suscitada por um vazio que vem preencher. Esta acção de futuro, esta necessidade que se confunde com a finalidade, este poder organizado, mobilizador e transformador da ideia, conduz-nos, evidentemente, para o terreno da dialéctica Hegeliana. (…)
É certo que o materialismo é actualmente a filosofia do proletariado, na medida exacta em que o proletariado é revolucionário; esta doutrina austera e mentirosa trouxe as esperanças mais ardentes e mais puras; esta teoria que nega radicalmente a liberdade do homem tornou-se o instrumento da sua libertação mais radical. Isto significa que o seu conteúdo foi adequado à “mobilização e à organização” das forças revolucionárias; e também que há uma relação profunda entre a situação de uma classe oprimida e a expressão materialista dessa situação.
Na medida em que permite uma acção coerente, na medida em que exprime uma situação concreta, na medida em que milhões de homens encontraram nela uma esperança e a imagem da sua condição, o materialismo deve conter indubitavelmente verdades. As verdades que contém podem ser recobertas e afogadas pelo erro; pode acontecer que, para se preparar urgentemente, o pensamento revolucionário tenha esboçado para as ligar uma construção rápida e provisória: o que se chama, entre os costureiros, um alinhavo. Neste caso, há muito mais no materialismo do que aquilo que exige o revolucionário. Há muito menos também, pois esta reunião apressada e forçada das verdades impede-os de se organizarem entre si espontaneamente e de conquistar a sua verdadeira unidade.
O materialismo é incontestavelmente o ÚNICO MITO que convém às exigências revolucionárias; e o político não vai mais longe: O mito serve-lhe, adopta-o.
- Jean Paul Sartre
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