Thursday, March 13, 2008

Texto Poético do Dia


TREVAS

De dia não se via nada, mas pla tardinha já se apercebia gente que vinha de punhais na mão, devagar, silenciosamente, nascendo dos pinheiros e morrendo neles. E os punhais não brilhavam: eram luzes distantes, eram guias de lençóis de linho escorridos de ombros franzinos. E a brisa que vinha dava gestos de asas vencidas aos lençóis de linho, asas brancas de garças caídas por faunos caçadores. E o vento segredava por entre os pinheiros os medos que nasciam.

E vinha vindo a noite por entre os pinheiros, e vinha descalça com pés de surdina por mor do barulho, de braços estendidos pra não topar com os troncos; e vinha vindo a noite ceguinha como a lanterna que Ihe pendia da cinta. E vinha a sonhar. As sombras ao vê-la esconderam os punhais nos peitos vazios.

A Lua e uma laranja de oiro num prato azul do Egipto com pérolas descriminadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na brisa eram um bailado de estátua de sonho em vitrais azuis. Mãos ladras de sonhar levaram a laranja, e o prato enlutou-se.

Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros entristecidos, havia gemidos da brisa dos túmulos, havia surdinas de gritos distantes — e distantes os ouviam os pinheiros esgalgados, os pinheiros gigantes.

A brisa fez-se gritos de pavões perseguidos. E as sombras em danças macabras fugiam fumo dos pinheirais plo meu respirar.

Escondidas todas por detrás de todos os pinheiros, chocam-se nos ares os punhais acesos. Faz-se a fogueira e as bruxas em roda rezam a gritar ladainhas da Morte. Vêm mais bruxas, trazem alfanges e um caixão. Doem-me os cabelos, fecham-se-me os olhos e quatro anjos levam-me a alma... Mas a cigarra em algazarra de além do monte vem dizer-me que tudo dorme em silêncio na escuridão.

Veio a manhã e foi como de dia: não se via nada.

- José de Almada Negreiros

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