Wednesday, September 17, 2008

Poema do Dia


NOITE FECHADA


Toca-se às grades, nas cadeias. Som

Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!

O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,

Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!

E eu desconfio, até, de um aneurisma

Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;

À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,

Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,

E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos

Alastram em lençol os seus reflexos brancos;

E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,

Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:

Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,

Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,

Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;

Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,

E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,

Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,

Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,

Um épico doutrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,

Nesta acumulação de corpos enfezados;

Sombrios e espectrais recolhem os soldados;

Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria

Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;

Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,

Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives

Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,

Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,

Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas

Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;

Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos

E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,

Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:

Entro na brasserie; às mesas de emigrados,

Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

- Cesário Verde, "Sentimento de um Ocidental".


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