Thursday, November 22, 2007

Poema do Dia

Esta tarde a trovoada caiu

Pelas encostas do céu abaixo

Como um pedregulho enorme...

Como alguém que duma janela alta

Sacode uma toalha de mesa,

E as migalhas, por caírem todas juntas,

Fazem algum barulho ao cair,

A chuva chovia do céu

E enegreceu os caminhos...

Quando os relâmpagos sacudiam o ar

E abanavam o espaço

Como uma grande cabeça que diz que não,

Não sei porquê - eu não tinha medo -

Pus-me a rezar a Santa Bárbara

Como se eu fosse a velha tia de alguém...

Ah! é que rezando a Santa Bárbara

Eu sentia-me ainda mais simples

Do que julgo que sou...

Sentia-me familiar e caseiro

E tendo passado a vida

Tranquilamente, como o muro do quintal;

Tendo ideias e sentimentos por os ter

Como uma flor tem perfume e cor...

Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...

Ah, poder crer em Santa Bárbara!

(Quem crê que há Santa Bárbara,

Julgará que ela é gente e visível

Ou que julgará dela?)

(Que artifício! Que sabem

As flores, as árvores, os rebanhos,

De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,

Se pensasse, nunca podia

Construir santos nem anjos...

Poderia julgar que o sol

É Deus, e que a trovoada

É uma quantidade de gente

Zangada por cima de nós...

Ah, como os mais simples dos homens

São doentes e confusos e estúpidos

Ao pé da clara simplicidade

E saúde em existir

Das árvores e das plantas!)

E eu, pensando em tudo isto,

Fiquei outra vez menos feliz...

Fiquei sombrio e adoecido e soturno

Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça

E nem sequer de noite chega...


- Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) em "O Guardador de Rebanhos", Tomo IV

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