Friday, January 16, 2009

Poema do Dia

CRISTALIZAÇÕES

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,

Vibra uma imensa claridade crua.

De cócoras, em linha, os calceteiros,

Com lentidão, terrosos e grosseiros,

Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento,

E o descoberto sol abafa e cria!

A frialdade exige o movimento;

E as poças de ar, como em chão vidrento,

Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,

Disseminadas, gritam as peixeiras;

Luzem, aquecem na manhã bonita,

Uns barracões de gente pobrezita

E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!

Tomam por outra parte os viandantes;

E o ferro e a pedra - que união sonora! -

Retinem alto pelo espaço fora,

Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,

Cuja coluna nunca se endireita,

Partem penedos; cruzam-se estilhaços.

Pesam enormemente os grossos maços,

Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!

Que espessos forros! Numa das regueiras

Acamam-se as japonas, os coletes;

E eles descalçam-se com os picaretes,

Que ferem lume sobre pederneiras.

E nesse rude mês, que não consente flores,

Fundeiam, como a esquadra em fria paz,

As árvores despidas. Sóbrias cores!

Mastros, enxárcias, vergas! Valadores

Atiram terra com largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! -

Carros de mão, que chiam carregados,

Conduzem saibro, vagarosamente;

Vê-se a cidade, mercantil, contente:

Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;

Em arco, sem as nuvens flutuantes,

O céu renova a tinta corredia;

E os charcos brilham tanto, que eu diria

Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,

Eu tudo encontro alegremente exacto.

Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.

E tangem-me, excitados, sacudidos,

O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem

De tão lavada e igual temperatura!

Os ares, o caminho, a luz reagem;

Cheira-me a fogo, a sílex, a ferrugem;

Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal-encarado e negro, um pára enquanto eu passo,

Dois assobiam, altas marretas

Possantes, grossas, temperadas de aço;

E um gordo, o mestre, com um ar ralaço

E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!

Que vida tão custosa! Que diabo!

E os cavadores pousam as enxadas,

E cospem nas calosas mãos gretadas,

Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas

Uma bandeira penso que transluz!

Com ela sofres, bebes, agonizas;

Listrões de vinho lançam-lhe divisas,

E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,

Surge um perfil direito que se aguça;

E ar matinal de quem saiu da toca,

Uma figura fina, desemboca,

Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento

E a quem, à noite na plateia, atraio

Os olhos lisos como polimento!

Com seu rostinho estreito, friorento,

Caminha agora para seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados

Como lajões. Os bons trabalhadores!

Os filhos das lezírias, dos montados:

Os das planícies, altos, aprumados;

Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,

Furtiva a tiritar em suas peles,

Espanta-me a actrizita que hoje pinto,

Neste Dezembro enérgico, sucinto,

E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,

Eles, bovinos, másculos, ossudos,

Encaram-na sanguínea, brutalmente:

E ela vacila, hesita, impaciente

Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,

Sem que inda o público a passagem abra,

O demonico arrisca-se, atravessa

Covas. entulhos, lamaçais, depressa,

Com seus pezinhos rápidos, de cabra!


- Cesário Verde


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